sábado, 7 de outubro de 2017

“AS DIFERENÇAS QUE NOS TORNAM IGUAIS”





    A menina chega às portas do grande salão. A camiseta que usa está, levemente, molhada pelo suor. Está só. Aqueles que para ali a trouxeram há muito foram embora.
     Olha para os lados, pensando em fugir, mas algo inexplicável a detém. O que se ocultaria atrás daquelas portas? Não sabia! Somente tinha consciência de que estava naquele lugar com um objetivo incerto, do qual somente a lembrança já a apavorava.
                As portas daquele recinto se abrem. Ninguém a convida para entrar. Hesita alguns instantes, sentindo as palmas das mãos úmidas. Por fim, toma resolução e caminha.
                  Enquanto segue pelo longo corredor, pode observar os muitos convidados que por ali se encontravam. Observa diversas fantasias: Um intelectual, uma professora, uma colegial, um bobo da corte e outros vestidos com roupas típicas do dia-dia, mas que tornavam-se caricatas naquele ambiente, para ela hostil.
                Chega finalmente ao salão principal, no qual muitos dançavam. Como não conhecesse ninguém, encosta-se a uma coluna e põe-se a refletir sobre seu papel naquele grande baile de mascarados. Rostos anônimos que por ela passavam, sem notá-la, mas que, a partir daquele instante, iriam conviver com ela, até o término da noite. O que se ocultaria por trás daqueles olhos? Qual era a história de cada um ali presente, por trás de cada máscara? O que restaria deles, quando a pesada maquiagem fosse removida?
                Perdida em tais conjecturas, a menina não notou um desconhecido, que dela se aproximava:
                - Com licença, senhorita! Nunca a havia visto aqui. Ao que vejo é uma nova convidada... Concede-me a dança?
                A voz provinha de um convidado, trajando uma veste monástica, cujo rosto estava encoberto por um capuz.
                Sem saber por que, a menina aceitou a mão que lhe era estendida e os dois começaram a rodopiar pelo salão. Conforme dançava, a menina começou a sentir-se mais segura, afinal havia encontrado um par com quem ficaria até o término do baile.
                Sentia-se leve, flutuava pelo ambiente. Permitiu-se até mesmo que um discreto sorriso viesse brincar em seus lábios.
                De repente, sentiu-se sufocar. Seu para a apertava com muita força, conforme a música evoluía. Desesperada, tentou, em vão, se desvencilhar do abraço. Quando olhou para os braços de seu amigo, não pode ver suas mãos, havia garras em seu lugar. Aflita, começou a se debater, tentando escapar. Porém a exaustão a deteve. Pensou em tentar dialogar com ele, para saber quais eram suas intenções:
                - Quem é você? – perguntou a chorosa menina. – Por que está fazendo isso comigo?
                - Vim para te alertar!  - Vociferou o nefasto conviva, pressionando, com muita força, suas garras nos braços da jovem.
                - Me alertar!? Me alertar sobre o quê? – quase berrou de desespero a menina;
                - Te alertar sobre sua presença neste baile. 
                - Minha presença aqui? – interrogou a menina – Por quê? O que fiz para você ou para estas pessoas?
                - O que você fez!? Ainda pergunta? Pois você veio! É esse o problema: A sua presença aqui nos incomoda! – gritou o convidado encapuzado.
                - Como assim?
                - Moça, vê se se enxerga!!! Olhe só para essas meninas! – E exibiu-lhe, soltando uma de suas garras, os demais convivas – Aqui são todos brancos, com os cabelos escovados, pele clara! Aqui há pessoas que pagaram para entrar neste recinto! Agora, você chega aqui e quer se comparar a nós? Olhe bem para você, com essa pele negra! Esse cabelo horrível e todo embaraçado! Bobear, tá cheio de caspa ou lêndea...
                Mas minha mãe me trouxe aqui! – choramingou a menina.
                - Sua mãe!? E quem é sua mãe? Empregada de um dos pais de um destes convidados que aqui estão?  Aqui, meu anjo, só tem bacana! Aqui só dá médico, advogado, engenheiro. – Por isso eu pergunto: O que você está fazendo aqui? Você, quando muito, deve ter roubado o convite de algum filho da patroa de sua mãe, essa é que é a verdade...
                - Moço, por favor, me deixe em paz! Não sei quem é você e por que está falando dessas coisas comigo! Por favor, vá embora! – a menina começou a chorar.
                Ao ver que havia atingido seu objetivo, o ser sombrio soltou a garota e, partindo, perdeu-se na multidão. A jovem sentou-se no chão e escondeu o rosto entre os joelhos.
                - Oi, moça! Por que você está chorando, quando todos estão em festa? O que houve? Conta para mim! – a oferta vinha de um belo jovem de cabelos dourados.
                A jovem ergueu o rosto, congestionado pelo pranto, e olhou para o azul dos olhos daquele jovem, que pareciam conter um lago de bondade incomensurável.
                - É que as pessoas, às vezes, não pensam no que dizem e acabam por machucar os outros. – disse a menina, começando a se acalmar.
                - Bobagem! – disse o jovem, com um simpático e convidativo sorriso – Vem comigo! Vamos dançar!
                Mais uma vez, a menina começou a rodopiar pelo salão. Enquanto valsava com esse novo par, ia conversando e, assim, expondo-lhe o seu drama.
                - É que o moço, que primeiro me tirou para dançar, disse-me coisas horríveis, sem sequer me conhecer.
                - E o que foi que ele te disse de tão mau, para deixar você neste estado?
                - Disse que esse lugar é freqüentado só por filhos de bacana e que eu, sendo negra e filha de empregada, estava no lugar errado... – começou a soluçante menina – disse também para eu me enxergar, que, se eu estava neste lugar, era porque eu ou minha mãe havíamos roubado o convite do filho do patrão... Foi horrível! Um soluço sentido explodiu na garganta da menina, e esta escondeu o rosto no peito de seu novo amigo.
                - Calma! Calma! Compreendo! – começou o jovem em um tom consolador. Após uma pausa, com um olhar cínico e pleno de deboche, continuou – Também pudera, não é? Ele não deixa de ter razão! – afastou o corpo do rosto da jovem e continuou seu raciocínio – Olha para essas garotas que aqui estão! Usam roupas das melhores marcas, podem sair com namorados, vão ao salão de beleza e se cuidam... Também acho que a sua presença aqui não será bem vista, porque você será tratada tal qual o patinho feio no galinheiro. Elas vão te rejeitar e te isolar. Até estou vendo: Vão caçoar do seu cabelo, da sua pele e além de tudo, vão implicar com suas roupas, que, aliás, estão já muito puídas.
                - Puxa, moço! – a menina começou novamente a falar com voz embargada – Minha mãe se sacrifica tanto! Somos pobres, é fato! Essa roupa pertencia à filha da patroa de minha mãe. Minha mãe arrumou e deixou boa para eu usar! Se eu estou aqui foi por causa do esforço da minha mãe!
                - Eu entendi, mas você não é bem-vinda aqui! – interveio o rapaz. – Vou te dar um conselho: Aproveite que ninguém ainda te notou aqui e cai fora, enquanto é tempo...  Porque se você ficar, elas vão engolir você!
                - Mas eu nada fiz para essas pessoas!  Por que elas não gostam de mim?
                O rapaz guardou silêncio e se afastou, sob o olhar perplexo da jovem. Pouco antes de virar as costas, voltou-se para a menina, apontou os dois indicadores em sua direção e reforçou:
                - Segue o meu conselho, cai fora, para o seu bem! – piscou um olho e partiu finalmente.
                Novamente a menina viu-se sozinha na multidão. Não sabia o que pensar. Queria ir embora, sumir daquele lugar. Sentia-se uma mosca presa a uma teia, prestes a ser devorada por uma traiçoeira aranha.
                Preparava-se para partir, quando um diálogo a deteve:
                - Aqui nesse baile só tem pessoas que, por tirarem boas notas, como prêmio, ganharam convite.  – disse uma garota loura e de bastas tranças.
                - Meu pai, como recompensa, além de me dar esse convite, vai me levar passear no shopping, onde comprarei muitas roupas bonitas.
                - É verdade! – concordou a garota loura que, apontando para a menina, comentou, de maneira taxativa, com sua interlocutora – Não somos como essa negrinha, que aqui está! Só veio de bicão, pois o máximo de desempenho que ela obteve naquela escolinha mequetrefe, onde estudava, foi uma média cinco... E raspando!
                - É mesmo! Kkk! Aqui não é lugar para ela! Que vá embora! Volta para a barra da saia da mamãe, chorar em volta daquele tanque de roupa suja... E dos outros, ainda por cima! Kkk.
                Não mais suportando tanta humilhação, a menina afasta-se dos convidados, vai até um banco de jardim. Senta-se e, com as mãos cobrindo as faces, dá vazão ao pranto...
                            ***
                - Oi, menina! Por que você está chorando? Você é nova nesta escola, né? Qual é seu nome? Meu nome é Natália, e o seu?
                Sem saber o que estava acontecendo, a menina ergue os olhos e depara-se com uma garotinha de seus 12 ou treze anos, loura, com um simpático sorriso, em que mostrava uma fileira de dentes, nos quais havia aparelho ortodôntico. Estavam num pátio cheio de crianças com a mesma faixa etária.
                - Meu nome é Raquel! – começou a menina, enxugando as lágrimas, por entre soluços.
                - E por que você está chorando? – quis saber Natália.
                - Vocês não vão me aceitar. Minha mãe é mais preta que eu, da cor de Nossa Senhora mesmo! Trabalha em casa de família e eu tenho muito medo de que debochem de mim, porque eu tenho dislexia e sou muito tímida – justificou-se, envergonhada, Raquel.
                - Que preconceito, qual nada! Isso é coisa da sua cabeça! Aqui todo mundo é amigo... Todo mundo é irmão! Você pensa que é diferente? Todos somos diferentes, mas temos qualidades! Afinal o que seria do mundo sem as diferenças?
                - Acho que você tem razão!  - acalmou-se Raquel.
                - Temos diferenças sim... Tá vendo aquele menino? – Perguntou, enquanto apontava para um jovem cadeirante – É o Tavinho, o menino mais legal da escola! Ficou assim porque os pais sofreram um acidente de carro. Como ele estava no banco de trás, não achou necessário usar o cinto, quando o veiculo bateu em um poste, ele bateu a coluna e, após muitas cirurgias, ficou com as pernas paralisadas.
                - Coitado! – apiedou-se Raquel.
                - Ele não é um coitado, não! – ralhou Natália. – Ele é muito inteligente, tira as melhores notas e está se esforçando muito para levar uma vida normal. E está tendo muito sucesso com isso.
                - É verdade!
                - O mal do ser humano é que ele acha que quem tem qualquer limitação, quer seja física, quer seja mental, é coitadinho... As pessoas têm que parar de ver as outras dessa forma...
                - Nossa Natália! Você está me ajudando demais com essas palavras. Já não estou mais chorando, olha só!
                - E aquela menina ali, então! – Natália, mais uma vez chamou a atenção da nova amiga.
                - O que que tem? – encheu-se de curiosidade Raquel.
                - É a Mariana! Linda, não é?
                - Sim! Mas o que há de errado com ela?
                - Surda de nascença. Repare no aparelho... Usa desde que a nossa professora de primeiro ano notou que ela ficava aérea na classe, como se não houvesse mais ninguém lá, além dela mesma.
                - Coi..., quer dizer, Meu Deus!
                - Hoje ela é esperta, faz fono, acompanha a turma na sala de aula e tem até namorado! E por falar nisso... Você tem namorado?
                Raquel ruborizou-se antes de responder:
                - Eu? Não! Ninguém se interessou por mim até hoje!
                - Não creio! Uma negra linda como você sem namorado!?
                - É que eu tenho um pouco de vergonha. Como tenho esse problema de dislexia, fico com medo de me aproximar das outras pessoas. Lá em casa sempre fomos só eu e meus pais. Nunca tive amigos ou colegas com quem me abrir ou me relacionar. – Justificou-se Raquel, com ares de culpa.
                - Que triste! – Apiedou-se Natália. Mas aqui, eu garanto, você vai recuperar esse tempo, porque você fará amizades facilmente e, quem sabe, de quebra até arrumará algum gatinho que morra de amores por você.
                - Será! ? – Riu-se Raquel, levemente ruborizada.
                - Tenho certeza! Mas, por agora, venha conhecer o resto da turma! Ei, pessoal! – gritou Natália para os demais adolescentes mais próximos – Venham conhecer a Raquel! Ela chegou hoje, caiu de paraquedas aqui na escola, e está meio perdida! – brincou.
                Todos os jovenzinhos aproximaram-se da mais nova amiga, uns mais ligeiros, outros mais tímidos. Por fim, todos estavam confraternizando com a recém-chegada.
                - Seja muito bem vinda, Raquel!
                - Obrigada a todos! – agradeceu a menina, com lágrimas de emoção. Estava tão feliz por haver feito amizades tão rápido, que todos os seus fantasmas interiores haviam se dispersado, quiçá para sempre.
                Tavinho começou a falar:
                - Sabe, Raquel, nossa professora de Artes possui um filho deficiente e, através dela, das lutas por que ela passa para criá-lo, nós aprendemos uma imensa lição, que levaremos conosco, enquanto vivermos.
                - E qual é! ? – encheu-se de curiosidade Raquel.
                Antes de responder e sanar a curiosidade aguçada da garota, o menino, de sua cadeira, olhou para os demais, como se esperasse algum tipo de aprovação, por fim falou, dirigindo-se a todos.
                - Aceitar as diferenças é o que nos torna iguais aos olhos do Criador!
                Após a fala de Tavinho, todos se abraçaram e, juntos, partiram pelo pátio afora, a fim de mostrar para Raquel as dependências da nova escola.