A menina chega
às portas do grande salão. A camiseta que usa está, levemente, molhada pelo
suor. Está só. Aqueles que para ali a trouxeram há muito foram embora.
Olha para os
lados, pensando em fugir, mas algo inexplicável a detém. O que se ocultaria
atrás daquelas portas? Não sabia! Somente tinha consciência de que estava
naquele lugar com um objetivo incerto, do qual somente a lembrança já a
apavorava.
As
portas daquele recinto se abrem. Ninguém a convida para entrar. Hesita alguns
instantes, sentindo as palmas das mãos úmidas. Por fim, toma resolução e
caminha.
Enquanto
segue pelo longo corredor, pode observar os muitos convidados que por ali se
encontravam. Observa diversas fantasias: Um intelectual, uma professora, uma
colegial, um bobo da corte e outros vestidos com roupas típicas do dia-dia, mas
que tornavam-se caricatas naquele ambiente, para ela hostil.
Chega
finalmente ao salão principal, no qual muitos dançavam. Como não conhecesse
ninguém, encosta-se a uma coluna e põe-se a refletir sobre seu papel naquele
grande baile de mascarados. Rostos anônimos que por ela passavam, sem notá-la,
mas que, a partir daquele instante, iriam conviver com ela, até o término da
noite. O que se ocultaria por trás daqueles olhos? Qual era a história de cada
um ali presente, por trás de cada máscara? O que restaria deles, quando a pesada
maquiagem fosse removida?
Perdida
em tais conjecturas, a menina não notou um desconhecido, que dela se
aproximava:
-
Com licença, senhorita! Nunca a havia visto aqui. Ao que vejo é uma nova
convidada... Concede-me a dança?
A
voz provinha de um convidado, trajando uma veste monástica, cujo rosto estava
encoberto por um capuz.
Sem
saber por que, a menina aceitou a mão que lhe era estendida e os dois começaram
a rodopiar pelo salão. Conforme dançava, a menina começou a sentir-se mais
segura, afinal havia encontrado um par com quem ficaria até o término do baile.
Sentia-se
leve, flutuava pelo ambiente. Permitiu-se até mesmo que um discreto sorriso
viesse brincar em seus lábios.
De
repente, sentiu-se sufocar. Seu para a apertava com muita força, conforme a
música evoluía. Desesperada, tentou, em vão, se desvencilhar do abraço. Quando
olhou para os braços de seu amigo, não pode ver suas mãos, havia garras em seu
lugar. Aflita, começou a se debater, tentando escapar. Porém a exaustão a
deteve. Pensou em tentar dialogar com ele, para saber quais eram suas
intenções:
-
Quem é você? – perguntou a chorosa menina. – Por que está fazendo isso comigo?
-
Vim para te alertar! - Vociferou o
nefasto conviva, pressionando, com muita força, suas garras nos braços da
jovem.
-
Me alertar!? Me alertar sobre o quê? – quase berrou de desespero a menina;
-
Te alertar sobre sua presença neste baile.
-
Minha presença aqui? – interrogou a menina – Por quê? O que fiz para você ou
para estas pessoas?
-
O que você fez!? Ainda pergunta? Pois você veio! É esse o problema: A sua
presença aqui nos incomoda! – gritou o convidado encapuzado.
-
Como assim?
-
Moça, vê se se enxerga!!! Olhe só para essas meninas! – E exibiu-lhe, soltando
uma de suas garras, os demais convivas – Aqui são todos brancos, com os cabelos
escovados, pele clara! Aqui há pessoas que pagaram para entrar neste recinto!
Agora, você chega aqui e quer se comparar a nós? Olhe bem para você, com essa
pele negra! Esse cabelo horrível e todo embaraçado! Bobear, tá cheio de caspa
ou lêndea...
Mas
minha mãe me trouxe aqui! – choramingou a menina.
-
Sua mãe!? E quem é sua mãe? Empregada de um dos pais de um destes convidados
que aqui estão? Aqui, meu anjo, só tem
bacana! Aqui só dá médico, advogado, engenheiro. – Por isso eu pergunto: O que
você está fazendo aqui? Você, quando muito, deve ter roubado o convite de algum
filho da patroa de sua mãe, essa é que é a verdade...
-
Moço, por favor, me deixe em paz! Não sei quem é você e por que está falando
dessas coisas comigo! Por favor, vá embora! – a menina começou a chorar.
Ao
ver que havia atingido seu objetivo, o ser sombrio soltou a garota e, partindo,
perdeu-se na multidão. A jovem sentou-se no chão e escondeu o rosto entre os
joelhos.
-
Oi, moça! Por que você está chorando, quando todos estão em festa? O que houve?
Conta para mim! – a oferta vinha de um belo jovem de cabelos dourados.
A
jovem ergueu o rosto, congestionado pelo pranto, e olhou para o azul dos olhos
daquele jovem, que pareciam conter um lago de bondade incomensurável.
-
É que as pessoas, às vezes, não pensam no que dizem e acabam por machucar os
outros. – disse a menina, começando a se acalmar.
-
Bobagem! – disse o jovem, com um simpático e convidativo sorriso – Vem comigo!
Vamos dançar!
Mais
uma vez, a menina começou a rodopiar pelo salão. Enquanto valsava com esse novo
par, ia conversando e, assim, expondo-lhe o seu drama.
-
É que o moço, que primeiro me tirou para dançar, disse-me coisas horríveis, sem
sequer me conhecer.
-
E o que foi que ele te disse de tão mau, para deixar você neste estado?
-
Disse que esse lugar é freqüentado só por filhos de bacana e que eu, sendo
negra e filha de empregada, estava no lugar errado... – começou a soluçante
menina – disse também para eu me enxergar, que, se eu estava neste lugar, era
porque eu ou minha mãe havíamos roubado o convite do filho do patrão... Foi
horrível! Um soluço sentido explodiu na garganta da menina, e esta escondeu o
rosto no peito de seu novo amigo.
-
Calma! Calma! Compreendo! – começou o jovem em um tom consolador. Após uma
pausa, com um olhar cínico e pleno de deboche, continuou – Também pudera, não
é? Ele não deixa de ter razão! – afastou o corpo do rosto da jovem e continuou
seu raciocínio – Olha para essas garotas que aqui estão! Usam roupas das
melhores marcas, podem sair com namorados, vão ao salão de beleza e se
cuidam... Também acho que a sua presença aqui não será bem vista, porque você
será tratada tal qual o patinho feio no galinheiro. Elas vão te rejeitar e te
isolar. Até estou vendo: Vão caçoar do seu cabelo, da sua pele e além de tudo,
vão implicar com suas roupas, que, aliás, estão já muito puídas.
-
Puxa, moço! – a menina começou novamente a falar com voz embargada – Minha mãe
se sacrifica tanto! Somos pobres, é fato! Essa roupa pertencia à filha da
patroa de minha mãe. Minha mãe arrumou e deixou boa para eu usar! Se eu estou
aqui foi por causa do esforço da minha mãe!
-
Eu entendi, mas você não é bem-vinda aqui! – interveio o rapaz. – Vou te dar um
conselho: Aproveite que ninguém ainda te notou aqui e cai fora, enquanto é
tempo... Porque se você ficar, elas vão
engolir você!
-
Mas eu nada fiz para essas pessoas! Por
que elas não gostam de mim?
O
rapaz guardou silêncio e se afastou, sob o olhar perplexo da jovem. Pouco antes
de virar as costas, voltou-se para a menina, apontou os dois indicadores em sua
direção e reforçou:
-
Segue o meu conselho, cai fora, para o seu bem! – piscou um olho e partiu
finalmente.
Novamente
a menina viu-se sozinha na multidão. Não sabia o que pensar. Queria ir embora,
sumir daquele lugar. Sentia-se uma mosca presa a uma teia, prestes a ser
devorada por uma traiçoeira aranha.
Preparava-se
para partir, quando um diálogo a deteve:
-
Aqui nesse baile só tem pessoas que, por tirarem boas notas, como prêmio,
ganharam convite. – disse uma garota
loura e de bastas tranças.
-
Meu pai, como recompensa, além de me dar esse convite, vai me levar passear no
shopping, onde comprarei muitas roupas bonitas.
-
É verdade! – concordou a garota loura que, apontando para a menina, comentou,
de maneira taxativa, com sua interlocutora – Não somos como essa negrinha, que
aqui está! Só veio de bicão, pois o máximo de desempenho que ela obteve naquela
escolinha mequetrefe, onde estudava, foi uma média cinco... E raspando!
-
É mesmo! Kkk! Aqui não é lugar para ela! Que vá embora! Volta para a barra da
saia da mamãe, chorar em volta daquele tanque de roupa suja... E dos outros,
ainda por cima! Kkk.
Não
mais suportando tanta humilhação, a menina afasta-se dos convidados, vai até um
banco de jardim. Senta-se e, com as mãos cobrindo as faces, dá vazão ao
pranto...
***
-
Oi, menina! Por que você está chorando? Você é nova nesta escola, né? Qual é
seu nome? Meu nome é Natália, e o seu?
Sem
saber o que estava acontecendo, a menina ergue os olhos e depara-se com uma
garotinha de seus 12 ou treze anos, loura, com um simpático sorriso, em que
mostrava uma fileira de dentes, nos quais havia aparelho ortodôntico. Estavam
num pátio cheio de crianças com a mesma faixa etária.
-
Meu nome é Raquel! – começou a menina, enxugando as lágrimas, por entre
soluços.
-
E por que você está chorando? – quis saber Natália.
-
Vocês não vão me aceitar. Minha mãe é mais preta que eu, da cor de Nossa
Senhora mesmo! Trabalha em casa de família e eu tenho muito medo de que
debochem de mim, porque eu tenho dislexia e sou muito tímida – justificou-se,
envergonhada, Raquel.
-
Que preconceito, qual nada! Isso é coisa da sua cabeça! Aqui todo mundo é
amigo... Todo mundo é irmão! Você pensa que é diferente? Todos somos
diferentes, mas temos qualidades! Afinal o que seria do mundo sem as
diferenças?
-
Acho que você tem razão! - acalmou-se
Raquel.
-
Temos diferenças sim... Tá vendo aquele menino? – Perguntou, enquanto apontava
para um jovem cadeirante – É o Tavinho, o menino mais legal da escola! Ficou
assim porque os pais sofreram um acidente de carro. Como ele estava no banco de
trás, não achou necessário usar o cinto, quando o veiculo bateu em um poste,
ele bateu a coluna e, após muitas cirurgias, ficou com as pernas paralisadas.
-
Coitado! – apiedou-se Raquel.
-
Ele não é um coitado, não! – ralhou Natália. – Ele é muito inteligente, tira as
melhores notas e está se esforçando muito para levar uma vida normal. E está
tendo muito sucesso com isso.
-
É verdade!
-
O mal do ser humano é que ele acha que quem tem qualquer limitação, quer seja
física, quer seja mental, é coitadinho... As pessoas têm que parar de ver as
outras dessa forma...
-
Nossa Natália! Você está me ajudando demais com essas palavras. Já não estou
mais chorando, olha só!
-
E aquela menina ali, então! – Natália, mais uma vez chamou a atenção da nova
amiga.
-
O que que tem? – encheu-se de curiosidade Raquel.
-
É a Mariana! Linda, não é?
-
Sim! Mas o que há de errado com ela?
-
Surda de nascença. Repare no aparelho... Usa desde que a nossa professora de
primeiro ano notou que ela ficava aérea na classe, como se não houvesse mais
ninguém lá, além dela mesma.
-
Coi..., quer dizer, Meu Deus!
-
Hoje ela é esperta, faz fono, acompanha a turma na sala de aula e tem até
namorado! E por falar nisso... Você tem namorado?
Raquel
ruborizou-se antes de responder:
-
Eu? Não! Ninguém se interessou por mim até hoje!
-
Não creio! Uma negra linda como você sem namorado!?
-
É que eu tenho um pouco de vergonha. Como tenho esse problema de dislexia, fico
com medo de me aproximar das outras pessoas. Lá em casa sempre fomos só eu e
meus pais. Nunca tive amigos ou colegas com quem me abrir ou me relacionar. –
Justificou-se Raquel, com ares de culpa.
-
Que triste! – Apiedou-se Natália. Mas aqui, eu garanto, você vai recuperar esse
tempo, porque você fará amizades facilmente e, quem sabe, de quebra até
arrumará algum gatinho que morra de amores por você.
-
Será! ? – Riu-se Raquel, levemente ruborizada.
-
Tenho certeza! Mas, por agora, venha conhecer o resto da turma! Ei, pessoal! –
gritou Natália para os demais adolescentes mais próximos – Venham conhecer a
Raquel! Ela chegou hoje, caiu de paraquedas aqui na escola, e está meio
perdida! – brincou.
Todos
os jovenzinhos aproximaram-se da mais nova amiga, uns mais ligeiros, outros
mais tímidos. Por fim, todos estavam confraternizando com a recém-chegada.
-
Seja muito bem vinda, Raquel!
-
Obrigada a todos! – agradeceu a menina, com lágrimas de emoção. Estava tão
feliz por haver feito amizades tão rápido, que todos os seus fantasmas
interiores haviam se dispersado, quiçá para sempre.
Tavinho
começou a falar:
-
Sabe, Raquel, nossa professora de Artes possui um filho deficiente e, através
dela, das lutas por que ela passa para criá-lo, nós aprendemos uma imensa
lição, que levaremos conosco, enquanto vivermos.
-
E qual é! ? – encheu-se de curiosidade Raquel.
Antes
de responder e sanar a curiosidade aguçada da garota, o menino, de sua cadeira,
olhou para os demais, como se esperasse algum tipo de aprovação, por fim falou,
dirigindo-se a todos.
-
Aceitar as diferenças é o que nos torna iguais aos olhos do Criador!
Após
a fala de Tavinho, todos se abraçaram e, juntos, partiram pelo pátio afora, a
fim de mostrar para Raquel as dependências da nova escola.